segunda-feira, 11 de julho de 2011

Dizer lágrimas


         Eu choro porque Clarice morreu. Ela inventou a história de estar indo a Paris, mas não voltou daquele hospital. Morreu. Não pude tocar-lhe a face, segurar sua mão, dizer palavra. Que palavra eu poderia? A ela, que tanto inventava e dizia? Não pude. Ela não era minha amiga. Era estranha e desconhecida. Uma estrangeira ladra de rosas espinhando a minha alegria porque morta antes de ser minha amiga. Ah, Clarice! Eu choro porque você morreu, viu? E não me diga com aquela voz de sotaque preso quase inventado e aquele jeito seco esquisito que você não tem nada a ver com isso. Mesmo morta, ainda que morta, andando morta por aí você é muito, mas muito demais que viva. E se você não gostava do que entendia, porque haveria eu de roubar-lhe o entendimento do mistério tão oculto de escrito? Agora, depois de morta, que devia estar calada, ficar dizendo essas coisas tortas faz ficar de tarde a minha paz, quase de noite a minha alegria. Rebelde bastarda, oh, caçulinha judia, órfã de pátria, de pai, de mãe, vai não, fica comigo! Por que você não esperou para ser minha amiga? Feito um cavalo para seu espírito monta em mim e diz aquelas coisas desencontradas, ao contrário de ser para sempre feliz.
         Nada, agora, é adequado para o luto. Não se pode velar a palavra, enterrar o não-dito, o maldito recife que te fez e não te fez forte, cansado de amar ou de morrer imigrante, águas de muito longe, essa minha lágrima pela sua morte, Clarice. Pouco invento o que sinto. Escrevo é lamento. O sal no olho, a mão com vista noutro ventre, noutro chão de estranheza e guerra, a terra de outro povo, o  querer de quando chega sem conserto uma história inteira que só pode ser o que ainda nunca não.
         Eu sei que o animal mágico e desimportante pode muitas ilusões, mas é também mudo e incapaz, miúdo. A palavra rugir não me faz mais que do signo de leão ou conta a minha história toda, ou o seu pecado em vão. Dizer não bastava, não é Clarice? Escrever não calava a dor e nunca salvou ninguém, não é? Você também chorou igual a mim, pelas mortes de antes, não? Silêncio. Ah, quem nos dera o  silêncio também não matasse e até Deus se calasse violento sem nos roubar a esperança e a crença, acima das suas invenções. Mas sofrer também é  silêncio sem escolha. Melhor então era mesmo escrever e, assim, a escolha ficasse menos verbo, sem a eternidade pretendida nos milagres que atormentam tudo o que se cala, tudo o que se pensa.
         Eu choro porque Clarice morreu. E é mais que violenta essa dor porque não há palavra depois, não há palavra não-palavra não.

         Márcio Ares. 2009.


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