sábado, 7 de abril de 2018

APÁTRIDAS


descoberta, entre os homens de ar fétido e insone,
a mulher negra de grandes tetas negras
pensa alimentar o filho homem de ar fétido e insone
que pensa alimentar-se do amor sem fome
enquanto a morte, incolor, já esquecida de outro nome escandalizado,
vigia, atenta e esperançosamente, a vila rodeada de homens e mulheres e crianças
que já nem sequer são

ao longe, arde o árido nos olhos até muitos outros longes
onde, iguais e mortalmente vigiadas, outras vilas fétidas e insones
com suas parcas crianças, suas negras de tetas secas e seus minguados homens
aguardam o milagre do toque das sirenes que recolham os tanques
e eles possam colher as minas plantadas depois da estação de muitos anos passados
para o vermelho sangue de dentro que os iguala
feito os milhares de outras mulheres, outras crianças e outros monstros
sob a cor do maior mal mais irreal dos homens
que se matam

Márcio Ares. 2018

TODO DIA


Tenho chorado vendo lugares aonde não fui
velhos amores que eu não pude
vidas de glória que jamais vivi.
Tenho chorado o futuro que me aguarda
o silêncio eterno das respostas válidas
as mortes que não entendi.
Tenho chorado o chão das igrejas, a culpa de querer saber
a razão esquecida no caminho dos anjos
desde o tempo em que eu não sabia das lágrimas vertidas.
Tenho chorado a alegria explícita que algum dia eu quis
não a minha tristeza escondida.
Esta foi chegando com o amor negado, com os sonhos perdidos ou só inventados.
Sim, talvez de uma outra vida ela, essa tristeza irmã-gêmea, tenha vindo.
Mas como se pode oferecer tal destino a um menino que ainda não sabe
que vai, um dia, padecer de uma velhice agoniada
por não ter sido só um menino com o seu sonho, sua alegria mais possível
e uma fé que jamais terminasse?
Talvez outro ser desfeito, fosse ele só um homem, fosse ele só um poeta
soubesse dizer porque faltam
o nome, o engenho, a arte, a mínima ideia do que mais se pareça verdade
para se pensar, por assim dizer, a maciez das almas.
Tenho chorado porque os homens são de aço
e eu sou só um pedaço, miúdo, humano, frágil
de algum sentimento guardado
que dói, sozinho, comigo até não ter mais palavra.

Márcio Ares. 2018.

PORQUE ELAS SABEM


antes mesmo da inocência perdida no tempo ainda encantado
de vontades acendendo o desespero das faltas
e dos talentos tantos que podiam ser
elas se deram a vos perdoar até o entendimento de todas as culpas

a descansarem o ventre contra a força e o descabimento
elas desaprenderam as amarras e o rancor
compreenderam de todo o querer o medo mais impuro
sob o torto caminho da profissão mais indigna
das memórias antigas onde jamais estiveram
mas que bem entenderam a elas pertencer

amai, portanto, as putas que elas vos darão amor
mesmo as indecentes, as meio tímidas, as menos ousadas
nos ricos bordeis ou à beira de poeirentas estradas
amai, na medida exata do amor mais pleno e mais bonito
porque embora saibam se valer das migalhas do amor improvável
amam a urgência carente das sôfregas visitas
a se imaginarem seres muitíssimo capazes
de se igualarem aos encantos das grandes artes
a enternecerem o mundo

amai as putas que elas gozam de aceitação consentida
e vos garantem a honra de serem machos vadios
cansados de jamais também serem vítimas
de vossos amores raros e desencontrados
de dores muito mais enraizadas
que elas bem sabem e silenciam

Márcio Ares. 2018.