Lembra, amor, aquela música nova que você me
ensinou
sem dizer para quando?
Falava de um grande amor. Era como se
falasse de Deus. Era como se falasse da gente.
Lembra aquele dia de chuva
e a gente feliz de doer a primavera dos
nossos sentimentos?
Lembra a gente na cama, o seu lábio sujo de
morango
você meio bêbada reclamando que acabou o
champanhe
e eu pensando que era porque tinha te
mordido?
Ah, sim, igual você levemente me fez, também
eu te mordi.
Mas não deixei o seu lábio sangrando. Muito
ao contrário disso, eu te beijei sorrindo.
Meu Deus, que jeito lindo você tinha de me
pedir um beijo,
de mergulhar fundo no aconchego do meu peito
até a onda se acalmar,
de me deixar daquele jeito mais sem jeito
e fazer a minha alma humana de bicho ser
infinitamente mais humana e menos bicho.
Não, àquilo não se podia nominar felicidade.
Era um om, um milagre, um nirvana,
um orgasmo de Deus se entregando a algum
pecado,
uma danação.
Lembra o tempo depois de algum tempo
retomando na gente os sussurros com os quais
ainda me surpreendo
dizendo e não dizendo, até muito dentro,
as nossas mais pequenas confidências?
Lembra você, com aquele querer intenso,
naquele tempo quase indecente de nós dois?
Lembra, amor?
Lembra a toalha esquecida antes do banho,
depois do quarto,
quando uma alegria um tanto sem vergonha
se insinuava entre a minha e a sua vontade
inesgotável
até a invasão dos seus lábios e de você toda
por dentro?
Lembra, mesmo, me diz, do mesmo tanto que eu
lembro?
Lembra você voltando das compras, me
escondendo até o melhor instante,
aquele champanhe e aqueles morangos, feito
uma cena do cinema?
A minha lembrança é muito antes de qualquer
por enquanto.
Já não tem onde a termine, ou disfarce, ou se
compreenda.
Já não sabe quando o primeiro instante.
Lembra o desarranjo das primeiras flores?
Você achou um descabimento.
Se as levei com raízes era para que durassem
sementes.
Você achou graça nisso, me serviu daquele vinho,
perguntei se tinha veneno.
Você disse, ah, você disse
como quem sabe do mundo os feitiços de tudo
aquilo, de tudo isso, de toda gente
que preferia a morte comigo a viver para
sempre.
Eu te prometi amor e você sorriu novamente.
Eu te prometi um filho e você me olhou mais
querente.
Prometi o fim dos meus dias. Você me beijou
em silêncio.
Lembra, amor, que mais do que se quis, mais
do que feliz, a gente foi acontecendo amante?
Lembra que existir sozinho não existia pra
gente, era vida em desencanto?
Lembra os medos de repente de um dia a gente
se perdendo?
Sim, eu sei que você se lembra, amor.
E só porque sei que você se lembra
adivinho a sua dor, muito maior que dói,
agora, a minha vida
quando toco o ser mais amado e nunca mais
esquecido
sob esta lápide que tanto me queima, pálida
e fria.
Márcio Ares. 2017.