domingo, 10 de dezembro de 2017

EM SEU LUGAR



Lembra, amor, aquela música nova que você me ensinou
sem dizer para quando?
Falava de um grande amor. Era como se falasse de Deus. Era como se falasse da gente.
Lembra aquele dia de chuva
e a gente feliz de doer a primavera dos nossos sentimentos?
Lembra a gente na cama, o seu lábio sujo de morango
você meio bêbada reclamando que acabou o champanhe
e eu pensando que era porque tinha te mordido?
Ah, sim, igual você levemente me fez, também eu te mordi.
Mas não deixei o seu lábio sangrando. Muito ao contrário disso, eu te beijei sorrindo.
Meu Deus, que jeito lindo você tinha de me pedir um beijo,
de mergulhar fundo no aconchego do meu peito até a onda se acalmar,
de me deixar daquele jeito mais sem jeito
e fazer a minha alma humana de bicho ser infinitamente mais humana e menos bicho.
Não, àquilo não se podia nominar felicidade.
Era um om, um milagre, um nirvana,
um orgasmo de Deus se entregando a algum pecado,
uma danação.
Lembra o tempo depois de algum tempo
retomando na gente os sussurros com os quais ainda me surpreendo
dizendo e não dizendo, até muito dentro,
as nossas mais pequenas confidências?
Lembra você, com aquele querer intenso, naquele tempo quase indecente de nós dois?
Lembra, amor?
Lembra a toalha esquecida antes do banho, depois do quarto,
quando uma alegria um tanto sem vergonha
se insinuava entre a minha e a sua vontade inesgotável
até a invasão dos seus lábios e de você toda por dentro?
Lembra, mesmo, me diz, do mesmo tanto que eu lembro?
Lembra você voltando das compras, me escondendo até o melhor instante,
aquele champanhe e aqueles morangos, feito uma cena do cinema?
A minha lembrança é muito antes de qualquer por enquanto.
Já não tem onde a termine, ou disfarce, ou se compreenda.
Já não sabe quando o primeiro instante.
Lembra o desarranjo das primeiras flores? Você achou um descabimento.
Se as levei com raízes era para que durassem sementes.
Você achou graça nisso, me serviu daquele vinho, perguntei se tinha veneno.
Você disse, ah, você disse
como quem sabe do mundo os feitiços de tudo aquilo, de tudo isso, de toda gente
que preferia a morte comigo a viver para sempre.
Eu te prometi amor e você sorriu novamente.
Eu te prometi um filho e você me olhou mais querente.
Prometi o fim dos meus dias. Você me beijou em silêncio.
Lembra, amor, que mais do que se quis, mais do que feliz, a gente foi acontecendo amante?
Lembra que existir sozinho não existia pra gente, era vida em desencanto?
Lembra os medos de repente de um dia a gente se perdendo?
Sim, eu sei que você se lembra, amor.
E só porque sei que você se lembra
adivinho a sua dor, muito maior que dói, agora, a minha vida
quando toco o ser mais amado e nunca mais esquecido
sob esta lápide que tanto me queima, pálida e fria.

Márcio Ares. 2017.