sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O TEMPO DE FORA

a beleza maior será segredo guardado?
em qual estrada o mais belo feito nos ilude?
quando a vontade mais linda que tarde?
a fontana de trevi que eu nunca soube?
a imitação barata do clube de bairro onde nasci?
tudo enquanto pode, num tempo além de agora, esse lugar mais sem onde
e, a cada voz que dói, meu coração responde
senão quando, o futuro das horas
no meu querer mais longe daqui
perguntando, sempre, o instante em que a gente
saiba mais bonito o tempo de existir

Márcio Ares. 2016

PARA AS TARDES DE UM FILHO


Mãe tem um jeito bonito de catar feijão!
É que meu pai xinga, sem dentes, a pedra no meio dos grãos.
Ela refoga na gordura de porco e no alho cheiroso da horta
amassado igual o pão de Maria esperando José pra jantar.
Fica bonito o amor em minha mãe.
A alegria das mãos faz o tempero da alma.
E eu fico até com fome de saudade.

Márcio Ares. 2016

sábado, 15 de outubro de 2016

O MAIS QUE SE VÊ



no chão deserto dos dias
olhar mais longe é poesia
pedra que se comove

e enquanto a alma descansa
reclamam os olhos o instante
da pedra que mais podiam


Márcio Ares. 2016.

NO EXATO MOMENTO



Poucos serão convidados para a mesa do Senhor.
Dentre os poucos eu te convidarei para partilhar comigo um pouco de amor.
Eu te darei uma gênese, uma tribo, muitos profetas, um filho.
Eu te darei ar, sementes, água, terra, amargo, mel.
Eu te darei anjos e demônios, o bem, o mal, para que escolhas, tu mesmo, os teus caminhos.
Eu te darei um nome, um talento, um lugar à minha mesa.
Sim, um lugar à minha mesa.
Porque és a ideia do meu ventre,
a maior e mais divina criatura.

Alegra-te, portanto, quando falares comigo
sempre que seja sempre a minha grata visita


Márcio Ares. 2016.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

MORNO QUE EU TE VOMITO


mistura uns dois quilos de vida a um grama de sorriso triste
raspinhas de Adélia Prado a uma pitada de Nietzsche
essência de rosa do grande sertão
uma boa dose de vinho sangue
fermento de versos bem antigos
com a cor da clara dos olhos que vigiam

marca na alma o tempo da espera
depois de untar a forma com o mel da poesia
vê crescer as dores do ofício
e, até o limite do invento mais velho,
come com os dentes enquanto quente ou frio
para que estejas comigo

Márcio Ares. 2016

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

INAPAGÁVEL



o meu lápis encantado despe o teu vestido
de ponta crua inventa o teu pecado
risca o escândalo dos teus lábios
insinua em crônica as tuas curvas
cabelos, nuca, vontade pura
o braço levantado, o pelo arrepiado, o mamilo, o susto
unhas no ar, olhar felino, a pele nua
a leveza do passo, o quarto esquecido, o chão da sala
e o lápis, sem medo, mais que nunca apontado
sombreando a imagem que te faz tão rara
inventando o enredo que te ilumina

Márcio Ares, 2016.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O REINO DIÁRIO



o que se deita e acorda comigo
todo santo dia
não é só o risco de um mundo vazio
é todo riso e sacrifício
todo sonho e todo vício
tudo que ama e agride

o que se olha e acaba não visto
é suicídio
não é exclusiva a dor do caminho
viver é um passo no escuro
o instante um presente inseguro
o amor um acaso da vida

Márcio Ares. 2016

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

DE LONGO ALCANCE



um poema não acaba a guerra
não recolhe os feridos
não explica a morte

um poema não redime a culpa
não condena ao escuro
não pretende julgar

um poema é a coisa da graça, o altar do castigo
um acaso divino, um demônio vivo
um jeito de olhar

um poema tem muitos nomes, palavra diversa, lei, sentimento, mistério
não escolhe a gente a que se destina
deseja a sorte de um outro lugar
celebra a vida, diz nossos mortos
perdoa as horas daqueles que não podem
saber a poesia que o poeta sofre
sofrer a alegria de bem mais amar



Márcio Ares, 2016.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

AO SER AMADO


essa paixão querente contra o teu querer calado
não curou a minha febre, o mal tempo que passasse
não te fez amor presente
não me fez melhor em nada       

o que eu mal tive contigo
me deixou vida em pedaços
só o vício dos teus olhos
sem o gosto dos teus lábios

Márcio Ares. 2016.