sábado, 1 de setembro de 2012

DIA DESSES


Um dia fico louco de jogar pedra
na menina do olho
e visito, cego, as muralhas da China
leio, em braille, o libertas da bandeira
que tarda ainda
e dou tiro a esmo
nas Coréias, de baixo e de cima

Um dia fico solto de morder de raiva
e pastoreio o povo
de volta aos três barcos
pra nunca mais mundo novo
e os vermelhos que se lasquem
e a coroa que me poupe
um quinto que ainda pago
de revolta e corda no pescoço

Um dia fico mais morto
se me trouxerem da África
porque longe de meu povo
desgosto, tristeza e asco
vermelho como os vermelhos que matam
terra à vista para a minha espada
independência que fique, ou que fosse
mais respeito com a minha pátria

Um dia. Ah, um dia.

 
Márcio Ares. 2012.

DESANCORAR-SE


Desviar-se do caminho, por um carinho de nada,
não é desvio, é estrada.

Sair dos trilhos, por nada, por um deslize, um pequeno pecado,
não é perigo, é vantagem.

E esquecer-se da vida, por um sorriso, um olhar inacabado,
não é conflito, é coragem.

Pisar outro chão, sonhar outra vida, querer outro rumo
fazem do mar do costume um bom porto de partida.

 
Márcio Ares. 2012.

AMOR DE PAI


Assombrava aquele homem dizer que nos amava.
Pensava perder o prumo, o rumo do passo.
Melhor conforto era gostar de longe, calado.

Sofrer tão só, ao seu modo bruto,
era um jeito seguro de amar dobrado.


Márcio Ares. 2012.

CIENTE


Meio sem querer, meio querendo de vez
dizer, sem jeito, valha-me Deus!
Coisa mais bonita poder entregar-se com fé à mais religiosa manhã.
Sino em badaladas, anjo clamando esforço, qualquer compaixão,
amor desacordado de noites muito mal dormidas
e esse pecado em meu corpo
lembrando indecências.

O meio da estrada é o mais sozinho.
De onde se parte tem dores que ficam.
E o que se deseja é paciência
para tanto longe sem tamanho.

 
Márcio Ares. 2012.

DESCOLORIDO


Eu teria amado, não fosse o medo. O seu medo de amar comigo.
O melhor medo de revelar-se, de estar em paz, de correr o risco ou perder o juízo.
O medo sem lugar para tanto amor descoberto.
Medo de amar desmedido.

Reconheço a coragem da minha idade, também pouca,
e as mil vontades, ao mesmo tempo,  de viver e morrer de ilusão
o mais louco sentimento.
Viver e morrer de amor ou paixão violenta.

Tínhamos, naquele tempo, um jeito indigesto de aspirar ternuras
para um tempo futuro, inseguro, torto, incerto.
Um tempo em que nos jogassem pedras e nos chamassem de loucos.
E que algum pecado o tempo nos dissesse, não essa culpa,
escuro ancoradouro de tudo que se perde, o pouco barco de um porto pouco.

Éramos donos de pedaços de nada, até que nos encontrássemos.
E se aos olhos do que é de repente, ou por acaso,
aos nossos olhos amor não se revelasse,
talvez eu fosse menos que esse resto que lembra
talvez você fosse para uma outra gente um outro acaso
e, vazios daqueles melhores momentos,
eternamente nos sufocássemos.

Hoje, na solidão dessas horas em que se entende o desencontro da estrada,
sei do seu amor porque o  vi no seu olhar, no seu gesto mínimo de medo e descaso,
no seu querer se indo, querendo às vezes que à vida eu voltasse.
E dói, agora, o sentimento mais doído de nunca tê-la reencontrado.

Se porque faltou promessa, ou se perderam palavras, ou muito, ou nada,
se porque não queríamos o que nos assustasse,
ou se porque Deus adivinhasse pra nós outros desatinos, fogo, brasa,
fiquei eu queimando faíscas,
cinza da sua fogueira de coragens apagadas.

 
Márcio Ares. 2012.