terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ave, pequeno engenho

 

O vento frio resiste além da noite fria.
Ao meio dia da manhã, ele canta por entre as gretas da janela uma canção de gelo. E avança, constante e cortante, para dentro dos vãos que separam as casas, os prédios, os muros e as grades.
Parece avançar para dentro da gente.
            A juriti, em seu ninho no galho da árvore que logo ali se avista, além da noite fria também resiste.
Ela não canta, mas não está triste. Avança, feito o vento frio, constante e cortante, para dentro do tempo em que serão filhotes os ovos dos quais não se separa, pousada entre as casas, os prédios, os muros e as grades.
Parece gerar paciência contra o frio.
            Talvez nesta manhã em que o galho mais balança, pondo em risco o seu maternal ofício, ela tenha protegido de pena e cuidados as pequenas asas do futuro.
            Talvez até parecesse um tanto apreensiva, na minha crença de tamanho e imprevisto frio, carregado por tão impiedoso vento de voz gélida e força quase impossível.
O ninho parece a perigo.
            A árvore mal sustenta o galho.
            O ninho quase não sustenta a vida.
            A coragem de um cuidadoso abraço de asas é que se desdobra ao longo de incertos dias frios, até a hora devida.
Tanto cuidado não foi bastante.
Olhos que depois viram alçaram triste vôo na solidão do ninho vazio, do amor doído em vão.
Sem ovos nem mãe, restaram no galho o arranjo de gravetos e uma vontade bonita, guerreira contra o frio.
Pousou, sem jeito, naquele ninho, a desalegria da vida.^

Márcio Ares, 2011

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Irrespirável





Às tantas horas da vida entrego o meu desencanto.
Não pode haver poesia em se fazer quarenta anos.
Onde a vida, que ainda outro dia, era mais que futuro?
Onde a palavra ainda virgem porque a mão insegura no oficio da escrita?
Onde o sorriso ainda bonito e a fé tão pura iluminando o sem fim do caminho?
Onde a beleza dos olhos para cada criatura, um momento qualquer, aquela coisa da mínima alegria?
Onde o metafórico leão a ser combatido com a força do sonho, na insuspeitada graça do desafio?
Onde o colo da mãe, o abraço, a benção do pai, o respeito daquilo a que se chamava família?
Onde a confiança nos iguais, o amor feito eterno carinho, o filho de Deus na simplicidade dos Natais?
Onde o coração arfando sem saber, o frio na barriga à espera do improvável primeiro beijo?
Onde a certeza do amor irrestrito, inquestionável, simples, com jeito de flor e asas coloridas?
Onde o longe da impensável morte, das improváveis rugas, dos semblantes tristes?
Onde o engano da felicidade possível?

Às tantas horas da vida entrego o meu desencanto.
Não pode haver poesia em se fazer quarenta anos.
O menino que eu fui ainda chora comigo, brinca feliz, tem medo do escuro.
O jovem que eu fui ainda quer ser bonito, quer mudar o mundo, curtir a turma, fazer nenhum compromisso, ter alguns apelidos.
O moço que eu fui ainda ergue o diploma com orgulho, acha um barato música e poesia, tem norte e tem pulso e quer acreditar na vida.

A essas horas entrego minha pena, meu dó, o meu mais esquisito.
Contrario o tempo, eu sei, que nunca esteve de mal comigo.
Acontece, agora, é que ele me dobra, amarrotando o meu querer indizível, dizendo que é hora disso ou daquilo.

Quero ainda perguntar, mais que ter respostas.
Quero o outro planeta por habitar, mais que esse lugar de minhas longas horas.
Quero algum largo horizonte, outras águas para o horror desse instante.
Quero o fundo mais fundo do mar, mais que um passeio pela costa, mais que o ar desses quarenta anos.

Márcio Ares. 2011.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Morte e vida severina




Sem tamanho é tomar a dor de uma gente e dizê-la encanto, em verso, prosa e dança às muitas gentes de um outro tempo.
Dizer essa dor, em cena, no entanto, não é só lamento; é alegria de busca, de promessa, de encontro. Dizê-la a este mundo que se cala, quando gritar é urgente, é o que faz Pedro Paulo Cava - que de novo não se basta e, bonito e pronto, se reinventa.
Escorre, em nossos frágeis olhos de gente futura, a coragem bruta, de morte e vida, a lágrima seca, severina terra de um viver incerto, inseguro, descontente. A fuga é o desencanto de uma outra e mesma gente que não se desculpa da verdade posta; e cava muito fundo outra sorte.
Tanta voz é mais que martírio. É de beleza que se chora.
De canção em canção, de momento em momento e de cena em cena – além do Pedro, além do João, além do Chico - temos um torrão concreto de felizardos artistas doando-se ao chão do mais miúdo detalhe trincado de muita existência.
É a voz que não redime a dor, mas que sustenta a paixão que se sente, que ironiza enquanto se mostra, que diz a que vem. E que às vezes faz rir, mesmo quando dói.
Dá licença o canto exposto para o bom gosto de alguma outra aparente estranha melodia: “carcará”, que toma pouso no canto presente; “súplica cearense”, tomada de súbito à voz de todo esse orquestrado elenco, feito um rio que se vence e que em mil almas se molha; "fica mal com Deus" que diz a fé de uma força que nunca se cansa e "asa branca", esse voo de terra e de longes que faz tão perto todo esse arranjo.
O rio nasce num seco de voz e vontade, o corte da corrente, destino de outras águas. E segue a vida a morte, a brisa de uma gente encorajada no assombro desse espetáculo que não tem hora.
Fica é a gente sem leito, sem saber chegar. E vamos ficando foz que ainda chora essa terra de querer e ir embora.
Esse mar, essa voz que agora faz lembrar o longe e mais belo da história, banha a alma de quem chega seco, insiste, e fica à mercê de algum pronto recife, náufrago de vida e morte, terra e lugar, severina sorte.

Márcio Ares, 2011.