terça-feira, 26 de julho de 2011
Irrealizável
As promessas de ontem ficaram no depois do amor
na timidez, quem sabe, talvez num pouco de medo,
no desencontro do quarto, no silêncio da sala,
na urgência da pele, na pressa do corpo,
à espera de hoje as promessas ficaram
Mas a manhã não termina o anseio
e as horas se beijam, no desassossego.
Na memória que ao tempo se entrega, muito além da espera,
as promessas ficam mais desejo
Márcio Ares. 2009.
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Herdeiro
nasceu do ventre de uma puta
puta que pariu esse amargo
rastro de fumo e cachaça
cheiro de merda escarrada
nas fuças de um porco amor
nasceu do ventre de uma puta
puta que se abriu pra esse macho
mastro de lume e desgraça
feito de festa acabada
nas grutas de um coito invasor
nasceu do ventre de uma puta
nasceu do centro das culpas
nasceu no escuro da porra
filho da puta que sou
puto que me fizeram
feito o puto que eu me sei
feito o puto que eu me sei
desse orgulho me desfruto
o mesmo fruto que eu herdei
Márcio Ares. 2008.
Força do lugar
Sob a luz do desencanto
soa ainda um canto azul
de céu, de mar
sou ainda enquanto azul
o blue do canto
soa ainda o canto cru
de cor azul, de céu, de mar
Sob a fé do mesmo arranjo
soa ainda um verso ateu
de rima e vez
soa ainda a voz do lindo
o amor adeus
soa ainda o medo infindo
a dor do mundo, a cor de amar
Sob as cores dessa força
tem açoite o meu cantar
a voz da noite
tem a boca pra lembrar
o céu da boca
tem o povo um gosto novo
pra encantar o todo, este lugar
Márcio Ares. 2009.
De volta
A cidade está lá fora, antiga e quieta.
Não sei olhar para ela sem o romance do Chico, Budapeste.
Árvores e telhados e janelas se enamoram de um Danúbio infatigável
muito depois daquela negra floresta.
A cidade e o rio se irmanam um pouco além do meu olhar.
Deste quarto não se avistam todas as grandes pontes, a outra cidade, mercados, mirantes.
Ainda guardado de mim está tudo lá, românticas pedras fincadas, fantasmas de boa fé,
minha alegria quase nada distante.
Feito este fim de tarde, o céu de amanhã há de ser avermelhado e frio.
Eu terei medo, como qualquer homem, à visita de um secular demônio.
Ele atravessará o quarto, me chamará de velho amigo, tocando-me o ombro.
Dirá que, antes do livro, antes do Chico, do sonho e deste reecontro,
aqui estive soldado de Átila, magiar huno, um guerreiro anônimo.
Sob a névoa do tempo e versos sem rumo, vejo, à minha volta,
com o olhar descoberto e um rastro de memória,
a cidade lá fora, antiga e quieta.
Márcio Ares. Hungria. 2008
De repente amigos
Encontramo-nos em Praga. Eu , querendo uma boa foto; ela, um menino Jesus.
Era novembro, um dia frio, a cidade cheia de todas as gentes.
Ela, deveras altiva, de casaco fino, modos sutis, aristocrática alegria.
Uma senhora de muitas histórias. Sabia os caminhos do mundo.
De modo único, sabia ser menina, toda prosa, terna amiga.
Tornamo-nos um trio. Ela, a filha mais moça e eu, tomado de empréstimo feito o mais novo dos filhos.
Fui feliz, naquele inverno-prenúncio de amizade tão fecunda.
Quando partiram, fiquei suspenso comigo, revendo as pontes da Hungria.
Seguiam mais longo caminho e eu, pesando o dia interminável, já não sabia ser sozinho.
Quisera a vida existisse sem tempo para despedidas.
Minhas fotos dirão, com certeza, o olhar de amor daqueles dias.
E o menino Jesus, desencontrado, na leveza dela fez-se a memória da vida.
Márcio Ares. 2008.
Recomeço
escreve sem medo, sem meio termo
seca estiagem, rio acima
escreve escravo, escreve grande, cor
escreve negro, branco menino
escreve palavra, escreve o anjo
escreve Deus, o dó, o arranjo
escreve o cheiro, o cansaço, a mãe
escreve pedra, escreve longe
escreve quem te ama e pára o tempo
suspende a rima, a repetição
inclui artigo, metalinguagem
aumenta o verso, altera o som
e espera
espera crítico, fã, editora dizendo não
espera a história, de novo o artigo
o amor parado desde o nono verso
escreve louco e, por fim, o título
esquece o outro, mergulha imprevisto
repete o som, o maldito não dito
retoma o tema e deixa a solução
pra um leitor aflito que nem sabe que não
vive o vazio, o medo, o meio termo
seco, estiado, rio abaixo
escrito pequeno
descolorido
Márcio Ares. 2008
Contingência
São tantas horas mais alguns minutos
contados no tempo
o passar das horas, segundos inventos,
o primeiro instante perdido na história,
a força argumento.
Olha a hora, olha a hora, olha a hora!
Atrasa a vida a pressa do relógio.
Adianta o mundo esse contratempo.
Olha a morte, olha a morte, olha a morte!
Mais dia menos dia, mais hora menos hora, mais gente menos gente!
Márcio Ares. 2008.
Aldrava tcheca
Quando vierem chamar à porta de tua morada
serei eu, fiel e vigilante leão, a anunciá-los.
A todos eles,
não obstante a liberdade pretendida dos poetas
ou aqueles de amizade mais querida.
Músicos, bêbados, pedintes,
crentes orgulhosos de sua fé, transviados, incrédulos,
ambulantes, amantes, meros desconhecidos,
artistas sem portfólio, produtores de renome ou anônimos sem norte.
A todos farei ouvir o meu rugido.
Serei a memória de uma república distante, forjada no leste da Europa.
Sob o mais leve toque, serei a voz da tua porta.
E, se um dia te tornares terra inóspita,
eu te farei um continente ao alcance de qualquer visita.
Toc... Toc... Toc...
Márcio Ares. Praga. 2008.
domingo, 24 de julho de 2011
Adivinhação
Você é puro silêncio quando eu preciso entender
não aponta o meu pecado, o meu tempo de ir e vir,
nem sinaliza a estrada quando procuro você
Você é muro de ausência quando estranho o que há de ser
não diz a razão das horas, o tempo de quando vir
muito antes de ir embora quero sempre acontecer
sem saber a minha sorte, minha morte é minha dor
e vou ficando sem norte e vou morrendo de amor
Márcio Ares. 2008.
Sedução
não me olhe, não me queira
pega a minha mão, entende o meu medo
então recomeça, devagar, minha descoberta
meu amor sem lugar
meu encanto em saber
não demore, não me deixe
toca minhas horas, espera o meu beijo
irmão descoberto sem esgar, mínima pressa
e depois deixa estar
meu espanto de ser
para toda hora teu olhar me despe
para toda veste teu querer me vê
Márcio Ares. 2008
Labirinto
Hei de ser eu mesmo em algum lugar
dentro de mim falta espaço, jeito, coragem,
tudo o que no outro ninguém ama,
tudo o que no outro ninguém arde
O silêncio amarga essa chama
porque não sabe onde
e nunca responde ao desespero
e nunca pergunta se vou suportar
É sem lugar essa dor.
É sem amor este lugar.
Márcio Ares. 2008.
Depois do olhar
Pode parecer confuso o que não sei dizer,
mas existe, cá dentro, inteira e absoluta, a minha clareza,
tragédias, romances, poemas inteiros de amor
e uma vontade sem fim
a fome do mundo.
a fome do mundo.
Tudo se estende para abraços incertos e artes equivocadas.
Nada se orgulha de ser encoberto, triste ou confuso.
Com a paciência do desejo, ou a ânsia dos desvalidos,
vai-se construindo um olhar diário e ousado
para o espetáculo das horas de certeza, de alegria,
no entendimento de se viver só,
sem palavra para a incompreensão dos sentidos.
Na desordem residem minha clareza e meus limites.
A vida é mais forte no desequilíbrio de tudo o que se pode.
Portanto, perdoa, se não me faço entender:
meu descaminho ainda não se deu à razão das minhas memórias.
Márcio Ares. 2008.
Perdido
não leva contigo meu olhar de amor
deixa-o comigo, ainda que pouco
apaga no espaço meu brilho cadente
torna pó o meu tempo de novo
dobra o cabo da minha esperança
busca outro mar sem o lastro de mim
retoma o destino, o antes da gente,
o vasto princípio sem medo de fim
deixa-me morrer que eu vivo sentido
salva tua vida que eu morro por ti
Márcio Ares. 2007
Anoitecido
o dia morre órfão de memória, ancorado em velhas promessas
águas de pouco futuro
um marinheiro à espera
e nenhum barco
sem amor sou mais sozinho comigo
a dor do mundo
céu e mar engolem meu norte
o mais profundo de mim
as horas alongam a falta
e o sol escorre dos olhos
no longe em que eu te perdi
Márcio Ares. 2007
Também português
O mar profundo nessa minha bandeira:
no azul redondo a bola do mundo e o branco de estrelas.
No meio, outro rumo, ordenando o progresso,
dividido ao mais diverso, pedaços do inteiro
O mar das muitas lonjuras, o verde esperança,
coragem mais plena e porto inseguro,
a cor do mato e de amar outro mundo,
o mastro fincado nos tempos futuros
e depois outra cor, o minério, a riqueza
Balança no invento a maior das bandeiras,
um povo, uma gente, um princípio distante,
e um chão brasileiro.
Márcio Ares. 2007.
Entrega
Sejam feitos frente e verso
Nosso gosto, nossa espera
Nosso rosto, este inverso
Nosso corpo, nossa veste
Tanto cheiro, a casa em festa
Nós outros
Sejam feitos frente e verso
O teu jogo, minha pressa
Tanto gozo, tanto resto
Pouco a pouco
O longe, o perto
Nosso louco amor mais louco
Sejam feitos céu aberto
O muito, o pouco
A frente, o verso
Márcio Ares. 2007
Descriação
Violento rabisco preenche teu ventre
e anuncia, anuncia, anuncia.
O verbo vara o grão, explode semente.
Viver engravida o texto, interrompe as regras,
respira, toma corpo, se endireita,
não sabe fim.
Depois de parido, versa o recomeço.
Cuidar exige poesia, frágil sentimento, amor,
suportar o ventre vazio,
dizer não ao que se quis incerto,
bater boca o não escrito,
calar o vício, palavra indevida,
inventar o tempo, escrever a dor, o riso,
o corpo do que pode ser.
Márcio Ares. 2007
Apoético
Quando não se é poeta
um nome não é mais que um nome
o homem não se faz de versos
Quando não se é poeta
a chuva caindo não é água penteada
a cor voando não é borboleta de asas
um texto não é filho partindo
saudade não é mal sem jeito
ficar não é por acaso
Quando não se é poeta
solidão não é bom destino
o silêncio não é sem horário
a hora não redime a espera
a carne não exige um verbo
dizer não engravida a virgem
a palavra não é só o que resta
Quando não se é poeta
a falta não inventa o crime
a vida não dói sem onde
o escrito não prediz o feito
o moderno não é Deus calado
um amor não pode ser de longe
morrer não pode ser mais perto
Quando não se é poeta
o medo não condena o sonho
a manhã não renova o drama
ser novo é não lembrar o outono
tristeza é não saber mais cedo
perder é não estar ganhando
ousar é não jogar no incerto
Quando não se é poeta
a nuvem não forma figura
fronteira é não vencer o muro
estrada é nunca estar completo
existir não promete angústia
transcender não requer astúcia
esquecer não ilumina a fé
Quando não se é poeta
saber não é um ser sozinho
viver não é sofrer deserto
Márcio Ares. 2007
Nossos caminhos
Enquanto esperávamos que a vida fosse de repente
e a alegria tivesse mais sentido
nossas irmãs se casavam, nossa casa esvaziava
nossos pais envelheciam
Enquanto esperávamos que a hora fosse mais própria
e o nosso abraço fosse mais amigo
nossas palavras se encurtavam, nossa distância nos calava
nossas horas se perdiam
Enquanto esperávamos que o outro fosse mais nosso
e a saudade outra vez nos reunisse
nossas estradas se alargavam, nossa pressa nos levava
nossos rumos se perdiam
Enquanto esperávamos que o mais novo nos redimisse
e a beleza se fizesse eterna menina
nossas idades se mostravam, nossa alegria tardava
nosso próprio destino
Enquanto esperávamos, feito a vida nos amávamos, mas não nos tínhamos.
E agora, a felicidade é isso:
ela, vestida de branco; ele, em seu figurino
ele, de não muito longe; ela, aqui de pertinho
ela, a irmã mais nova; ele, o mais novo amigo
Márcio Ares. 2007.
Paterna idade
Esquece no meu corpo o teu corpo anunciado, semente de asas,
Deixa teu amor prenunciando em mim, prudente crisálida, o rumo do céu
e repousa até a grande hora
Desperta amante deixando meus lençóis, tronco sem futuro, sem fruto e sem cor
Toma o dia que se estende, múltipla vida, no verde dessa grama, no desafio do vento
e conforta o medo no calor do solo
Segue o rastro da memória e torna ao galho, meu corpo frágil,
E colore meus olhos com olhos de amor
E colore meus olhos com olhos de amor
Pousa teu destino junto a minha velhice, tua velha casa
Márcio Ares, 2007.
sábado, 23 de julho de 2011
Sempre comigo
Meu amor eu te amei
Tantas vezes que nem sei
Se me perdi ou me achei
No arco-íris do que foi
o seu amor pra mim
Meu amor eu tenho medo
Descolorido e sem fim
Você guardando segredo
Do seu amor pra mim
Minha dor sem direção
Me leva a lugar nenhum
Às placas da contramão
Esquecendo sem saber
Esse tanto de você
Ainda florindo em mim
Há trilhos obrigatórios
no meu coração
As cores que ainda choro
Os versos dessa canção
Que fiz assim
Pra você e pra mim
Nas curvas dessa estação
Longa estrada, quase nada
Assim tão sem destino
Buscando outros abraços
Pra ver se ainda me acho
Com você dentro de mim
Márcio Ares. 2005
O mais doído
Veio o anjo, veio Maria, a velha história
vejo como agora, feito a hora da hora
o esposo clamando o distante do humano
os culhões da fé
Vejo memória, o filho chegando
prenúncio de graça, infância, milagre
o sonho do sonho, a soma do estranho
doendo por ser
Depois, o deserto, o incerto, o aceite
e uma dúzia inventando
o motivo da cruz
Vejo como agora
um pai sem saber
Márcio Ares.
Nascente
Minha alegria tem correnteza e pedra
Segue, feito o rio, buscando rumo, dobrando serra
Até a represa, o poço fundo, escura tristeza
Sapo, mais que peixe
Lodo, mais que beleza
E adentra a terra meu pranto feito
Para a flor que espera
Meu recomeço
Além do mundo
Vim te buscar, vou te mostrar o mundo
O mundo já não é o mesmo mundo não
Vou te levar nessa palavra, espera,
Se eu espero é leve o grito em vão
Se essa falta é só disfarce, é guerra,
Eu tenho é pressa e vou tomar-te a mão, eu vou te dar a mão
E procurar algum lugar pra compensar a ingratidão
E te levar pra outro lugar onde o irmão é mais irmão
Eu tô cansado já não basta ouvir
O sim que nega o que é melhor pra mim
Eu tô de porre da submissão
O sim que humilha, que disfarça o não
Já não suporto estar tão triste, eu quero,
O que era antes dessa escravidão, antes da aberração
Vou procurar outro lugar pra reinventar a comunhão
Vou alertar o teu olhar pra humanizar o coração
O dia-a-dia é uma ilha a muitas milhas da razão
O mundo é mudo, é surdo, é cego, é só um tiro de canhão
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