terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O AÇO DO MEL (uma quase resposta a "Melaço de Sangue", de Bianca Mendes)

Você, que é lá de longe, fale da caatinga, do que não sei coisa nenhuma que baste.
Sou do cerrado, entende? Meio deserto igual, eu sei, mas diferente.
É desse outro inferno que se vem de dentro essa gente bicho quase inventada.
É desse causo de onça vigiando bezerro adulto, cria de gado miúdo, cachorro quase homem, homem quase xucro, quase.
É dessa cria perdida de olhar capoeira na seca, de chorar de olho seco de tanto ser calado, de assoprar palavra torta pra o amor de outro jeito, de saber onde dói o calo e o pé descalço que se espalha feito o mato.
É desse tanto ser ligeiro na esperteza da larga, meloso, braquiara, capim navalha, araticum formigando o cerrado, colchete de arame entortado, sopro de poeira vermelha, o diabo na encruzilhada.
É dessa incapacidade de alguma clareza pra solidão cósmica do esforço contra a vastidão de nunca se entender, ou demais saber o que vem quieto e fervente.
Mode quê a vida joga o sujeito nos buracos, ele é mais tatu caçado pra cachaça na mesa de truco de madrugada, é rede no corguim das águas, garrucha com bala de estanho, força da mão que benze, que mata, o que nem sequer se pensa, pobreza sem perceber, o tamanho da falta.
A parede rebocada de vermelho, o chão batido da sala, o quadro enfeitando a parede, o marimbondo na cumeeira da casa. Tudo é o cerrado. A mãe querente de melhor mundo ou destino para o menino-anjo-bicho que pariu, em desagravo de sorte, pra mais longe da angústia do que pode ou não pode, feito Deus pela metade, deserto, querer sem lugar, o inferno que vem, tudo que não chega.
Você, que é lá de longe, fale da caatinga, do que não sei coisa nenhuma que baste.
Sou e sempre fui menino do mato, vigiando estrada, inquieto no trilho do meu tamanho minimamente crescido. Nenhuma condução chegante pra um jeito mesmo pouco de partir. Pau seco plantado. Sou o silêncio torto que olha o que vê e fala calado. Semente de muito menor futuro que sabe e não sabe.

Márcio Ares. 2016.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

DESPROPÓSITO


Você não sabe o que eu sinto, é verdade, mas finge entender.
Você se basta e me xinga, eu sei, querendo moldar em mim
o que eu não sou de você.

Não posso e não quero ser amargo desse jeito.
Tanta regra leva tempo, não tenho tempo a perder.
Você não sabe o que eu amo, se anjo, demônio ou abismo.
Não quero o certo mais certo, prefiro viver a perigo.

Tem hora que eu sofro tanto e você nem adivinha.
Minha dor tem pouco a ver com a sua sábia poesia.
Tem dias que eu, tão pequeno, mendigo qualquer carinho.
Que autores devo ler? Que palavras quer de mim?
Enxerga a minha retina, o menino dos meus olhos,
meu dilema, meu arco-íris, desafio.
Não leva a coragem que eu tenho, brilho próprio, auto estima.
Não duvida dos meus sonhos, não me queira velho, agora, não me aponta a direção. Deixa eu ir, com a minha sorte, ter o chão do meu caminho.

Seu velho baú de tristeza não sabe a minha vontade.
Não me queira desse modo, não impeça que eu me perca.
Tenho acaso e cicatrizes, acredite, que são códigos do medo.
Mas tenho o elixir da vida, saudade que ainda não veio.

Pode fingir à vontade, eu lhe digo, mas não me pode entender.
Pode até sofrer comigo, lembrando tempos antigos, bem sei.
Mas você não sabe o que eu sinto, insisto.
Nunca haverá de saber.


Márcio Ares. 2011.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A CRIATURA


      O vestido tinha a cor da libido. Realçava-lhe as curvas e o gesto fino. Andava sobre estrelas contra o céu do meio dia. Era o sol brilhante contra os olhos do querer, a cor do arco-íris andante. 
     Ia, feito a tarde logo faria, enfeitar a paisagem. Mulher de encher um verso na mão da poesia, pássaro sem pressa para a presa sob os olhos da vigília.
      O sujeito, pensando forte mil coisas inconfessáveis, se desacontecia.
     O instante era memória para toda uma vida. O feitiço durou eras de sempre ser recontado. A rua transformou-se em passarela. Ou seria adolescente demais dizer isso desse jeito mais que despreocupado e assim meio que vadio?
      Aquelas pernas sobre aqueles saltos fariam inúteis todos os sinais.
     E quando, mais tarde, no silêncio do seu mais solteiro quarto, ele de novo pensasse forte mil coisas inconfessáveis, a sua vida se descobriria em vão, um quase acontecimento.
     Isso é quando um único momento justifica o horror e as guerras do mundo. Um momento em que Deus pousa, agradecido, sobre a terra e diz:
     _Olha como sou bonito!!!

     Márcio Ares. 2016

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

QUASE UM PRESSÁGIO


sobre o velho galho da mangueira velha
o tucano pousa, pesado e silencioso,
cala pássaros, grilos, o quintal inteiro
até o cemitério sob a extensa grama verde
no longe lá dos fundos da casa

no perto mais perto dos ninhos
enquanto o amor das mães vigia os filhotes
a pressa entende a urgência das horas
e o tempo se retrai com a ideia inóspita
da fome
de experimentar as asas

Márcio Ares. 2017

SEMENTE


colher da árvore o entendimento
cozinhá-lo bem até o tempo em que sirva
serenamente aos momentos da escolha
de toda gente
ser o instante do tronco e das folhas
o verde maduro sem urgência
o caminho seguro dos brotos
até viver para sempre
um pouco mais sábio que hoje

Márcio Ares. 2017

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

PRESENTE

O amor alcança estrelas quando desaprende o medo
ergue-se no entendimento das coisas
diz o leste e o norte das lendas
traz a alegria de agora
inventa olhos para o instante mais pleno
e completo se esconde no milagre das horas
O amor é grande e pequeno
enquanto mais forte de querer se dobra


Márcio Ares. 2007.

REALEZA

Acordar ao seu lado
é ser lindo como o rei que eu sou.
Um rei sem ouros, de um tesouro só.
Um rei coroado com a beleza do amor.


 Márcio Ares. 2011.

FELIZMENTE

Você terá, ao entardecer, as minhas cores
quando as flores murchas à beira do caminho
e os bichinhos de pelúcia, largados no quintal,
forem o mínimo cuidado com as coisas de não esquecer.

Você terá, para amanhecer seu desencantamento,
pouco do meu sol,
o vazio dos meus olhos
e um querer mais que violento.

Rasga, na costura, o tempo ao longo da estrada
e procura no bolso, ainda quase encantado, aquele mais de dentro,
o momento mais intenso,
a hora mais colorida,
a vida mais acontecendo
e um velho sorriso de poeta
desencontrado.


Márcio Ares. 2011.