quinta-feira, 24 de novembro de 2011

INDECIFRÁVEL

Não é possível que só eu me incomode com essa coisa infinita.
Então, ninguém escuta, no meio da noite, os meus gritos?
Onde, porventura, estará aquele que sabe da vida
mais que o fantasma que me ergue o braço, e cospe no meu rosto,
a verdade que nunca se disse, palavra sem boca,
o lugar de onde todos vieram, igual e antes de tudo que existe?
Por piedade, aventure-se um homem que saiba
e tire da minha alma essa coisa ainda sem nome, a escuridão do medo,
plantada, crescida, enraizada por alguma lei, muito dentro de mim,
de tudo que se cala e que eu também não sei.



Márcio Ares. 2011.

LU DE LEMOS

Você toma conta do meu verso.
Até parece embriagar-se aos olhos do poeta.
Isso, que aos poucos se serve, a você a vida tanto oferece.
Essa coragem que nos deixa ébrio.
Meu poema fica o meio das horas, o instante suspenso que mais dói,
se não sabe o seu olhar, suas mãos, o inverso que penso quando se faz minha intérprete,
esse amor que se aprende sem nenhuma pressa.
A quem, Luciene, você, no sentimento mais de dentro, não me pinta herói?
A quem outro você arranca o talento com esse jeito às avessas
acarinhando o que eu invento, feito rimas que trombam com a cor do céu?
Quando nem quero saber, quando mal posso explicar, quando me basta escrever,
esse jeito seu, essa coisa meio louca e meio que não, essa alegria esperta, essa onda,
espraia o mar da minha ressaca, me sacode bravo,
e grita comigo a verdade do sol, o medo que não pode ser.
Grita comigo porque a vida é samba, é ginga, é bossa nova
porque a vida é uma voz e, uma vez por nós, um verso que dure pra sempre.



Márcio Ares. 2011.

VIGÍLIA INCONTIDA

Dorme, ao amanhecer das horas, oh meu menino lindo!
Respira, agora, o dia que desperta.
Sonha o querer sem fim
e acorda em mim o amor sem pressa.




Márcio Ares. 2011.

ENCANTAMENTO

Se eu pudesse entender os feitos do poeta
diria que ele amou por toda a noite
sentou-se, pela manhã, num bar quase nem aberto
num bairro discreto de Belo Horizonte
e bebeu café.
Espirituoso, disse uma coisa qualquer à garçonete, talvez até num outro idioma.
E ali mesmo, no drama de olhar atento, escreveu um poema
como se em Paris estivesse.

Reinventando a vida, feito um mágico indormido,
o que não se entende é essa noite às avessas,
a insônia do invento,
esse truque de versos.



Márcio Ares. 2011.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

LAVRADOR

se Você voltasse n'algum dia de maio
haveria de me dar sentido, amor atravessado,
longe de nem quando era dezembro

a história antiga, de repente se molhava de alegria,
primavera ao meio, a semente jogada,
meu Deus menino


Márcio Ares. 2011.

ARTE MODERNA

Azul de fé recortado de azul
ao fundo no céu desenhado
translúcido azul
escuro em dois tons
nuvens de antes da noite
manhã que nada
um sol pintado de luz



Márcio Ares. 2011.

PURO ASTRAL

Nossa amizade foi ficando de outro modo
e sei que o destino é que nos enfeitiçou.
Se eu era um amigo nas cartas da sorte
é porque mais gosto que adivinho o amor.



Márcio Ares. 2011.

PROPÓSITO

Importa o instante que se vive
não a morte que se prova.

Viver bem pode ser bonito
colorido de tempo
e de sol.


Márcio Ares. 2011

INCONSISTÊNCIA

A manhã seguia apressada quando eu quase me atropelei numa rua do acaso, tão comum são essas ruas ao longo das manhãs em que temos pouca calma.
Por um instante eu me via no espelho, a mesma pessoa, outra imagem.
Eu era aquele homem atravessando a rua, aquela barba feita, mas de um branco culto, aquele andar meio torto, aquele riso incerto e um certo olhar inseguro, misto de saber e não saber, de ser e de se. Eu era aquele homem deixado ali, adentrando a curva, passando ao futuro.
Curioso quando o improvável nos revela a fatalidade e a gente se encontra com a gente, num outro tempo, quando o futuro quase nos atropela. Aquele homem era eu e igualmente não era. Aquela figura ali, de repente, acontecia, quase urgente para o que eu ainda não era.
Um velho atravessando a rua dizia de um contratempo mais que um tempo de espera. Nenhuma incerteza própria de qualquer momento poderia negar esse encontro com aquele velho que eu era e, entretanto, não podia.
A fé talvez pudesse desenhar a imemoriável experiência de alguma vida passada em que eu fosse este ser presente e uma outra existência ainda não chegada. Conveniente seria, ou mais confortável, até, o limite de acreditar. Aquele era o reflexo de alguém que, conforme as leis, dizia e negava a firme verdade das coisas, com mágica ou desconhecida sabedoria.
A razão, no entanto, ali se apresentava em duas figuras idênticas, num tempo desencontrado, por demais ilógico para se aceitar. Só mesmo num tempo diverso o mesmo corpo ocuparia um mesmo espaço. Um moço, o outro velho. Um ainda cedo, um outro que tardio.
Perdido estava de algum passado aquele homem que eu seria e quase atropelado por quem ele já fora, eu, seu passado agora presente na via dessa grande cidade.
Não se tratava de nenhuma criação fantástica, exercício de paralelismo, ou qualquer saudade. Eu era aquele homem. Ele era o que eu sou, em algum tempo, de algum modo remoto, uma transformação de mim mesmo, e de seu próprio passado. Eu via, como num espelho, o homem que eu não era, minha imagem refletida.
O contorno daquela figura não era incoerente com a obra que a compunha. A mesma matéria e o mesmo corpo, em certa medida metafisicamente complexa, mas ainda duas proposições que não se excluíam.
Feito a métrica e seu verso, éramos palavra de mesma poesia que somente aos olhos de um outro leitor poderia ser distância, qualquer criação diversa.
A inexorável mão do tempo esmagara a mim, tornando-me aquela velha criatura, por quem eu passava quase ao léu. Eu estava ciente, entretanto, de uma dupla existência, por acaso acontecida num lapso qualquer do tempo.
Tentei avaliar de outro modo a situação, visando a uma percepção imparcial e mais transparente. A verossimilhança ali estabelecida, de tal forma amalgamada na minha crítica e sóbria consciência, não deixava margem possível a qualquer negação daquele instante e daquela inusitada incoerência.
Éramos dois e éramos um. O que eu, de fato, era; e o que eu, de fato, seria.


Márcio Ares. 2011.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

AUTO-PIEDADE

Só agora dei por mim,
ao me esquecer de vez.

Lembrança é muita culpa guardada.


Márcio Ares. 2011.

NOTURNO E SORUMBÁTICO

Tudo é muito triste quando morrer é a melhor notícia
do dia

Tudo é muito triste quando amanhã é só mais um dia
que morre



Márcio Ares. 2011.

AMOR SENTIDO

O amor que eu vi na TV
não era amor pra valer
era um amor mais bonito
era um amor que se liga e desliga
era amor sem perigo
era amor com juízo
não era amor
o horror que eu vi na TV

O olhar que amei na TV
não era olhar de doer
era olhar de sempre sorrir
era olhar de alegria ao partir
era um olhar vazio
olhar de sorte vil
não era olhar
o azar que eu vi na TV

Cego, o amor que eu vi na TV
sem amor é que se via
sem olhos é que se vê


Márcio Ares. 2011.

SEM SAÍDA

Ser amado é muito não
Feito poeira incrustada
No mais difícil da estrada
Na placa de contramão

Com o amor entendo mais
Aprendo que sou capaz
De ser o que as placas são

Saber o pó da viagem
Perder o rumo de casa
Morrer a morte do chão


Márcio Ares. 2011.

BEM DE REPENTE

Tem hora que eu tenho dó
de quem sabe o que é viver
de quem chega pra morrer
de quem ama e vive só

Tem hora que eu tento é ser
o que pode ser melhor



Márcio Ares. 2011.

SAUDADE LÁ DE CASA

Em cada casa de pai deve ter um curral,
um caminho rodeado de conselhos
e uma casa que ame, no final.

Em cada casa de pai deve ter um pai,
um jeito de servir a mesa,
memória de muito mais.

Márcio Ares. 2011.

ACORDE UM MAR A VIDA MAIA A COR

Por que envelhecer para o desejo que sempre se quis?
Por que chorar, sem a devida razão, por tudo que não se viveu?
Por que ser homem, se o animal ainda ruge em mim e se despede ao final de cada manhã, como se o dia, ou como se a vida, ainda fosse hoje?
Por que a velhice dos dias sombrios se o motivo é agora e a paixão ainda existe?
Por que a vida sem nenhum sorriso, modos, amor, juízo, quando a nódoa de existir foi ou sempre será o que não é preciso, ou que haverá de ser ainda numa outra vida?
Viver é quanto tempo? Qual a urgência do que não se deu ainda?
Os primeiros povos que o viram deram-lhe nome, certeza de um lugar, parte de algum futuro destino.
Este mar e tudo que se construiu é muito mais que se conta, é tudo que não se encontra nas ruínas que os livros dizem.
O povo de antes, muito antes do que se viu, sequer pensou a distância ora instaurada, mas então sabida. Limitou-se ao fim que em pouco, ou muito quando, se daria. Um tempo de pedras, talvez, antes do tempo do milho. O ciclo misturou-se ao sagrado e à sabedoria.
Dezembro de dois mil e doze, planetas que se avizinham, crenças que não se delatam, o medo antigo dos fortes, do fraco, e esse mar assistindo ao possível.
A vida outrora tão sábia agora não se adivinha.
O homem, raça inexata, sem saber chora a desgraça, que há milênios se anuncia.

Márcio Ares. 2011. Cancun, Península de Yucatán, México.