quinta-feira, 3 de novembro de 2011

INCONSISTÊNCIA

A manhã seguia apressada quando eu quase me atropelei numa rua do acaso, tão comum são essas ruas ao longo das manhãs em que temos pouca calma.
Por um instante eu me via no espelho, a mesma pessoa, outra imagem.
Eu era aquele homem atravessando a rua, aquela barba feita, mas de um branco culto, aquele andar meio torto, aquele riso incerto e um certo olhar inseguro, misto de saber e não saber, de ser e de se. Eu era aquele homem deixado ali, adentrando a curva, passando ao futuro.
Curioso quando o improvável nos revela a fatalidade e a gente se encontra com a gente, num outro tempo, quando o futuro quase nos atropela. Aquele homem era eu e igualmente não era. Aquela figura ali, de repente, acontecia, quase urgente para o que eu ainda não era.
Um velho atravessando a rua dizia de um contratempo mais que um tempo de espera. Nenhuma incerteza própria de qualquer momento poderia negar esse encontro com aquele velho que eu era e, entretanto, não podia.
A fé talvez pudesse desenhar a imemoriável experiência de alguma vida passada em que eu fosse este ser presente e uma outra existência ainda não chegada. Conveniente seria, ou mais confortável, até, o limite de acreditar. Aquele era o reflexo de alguém que, conforme as leis, dizia e negava a firme verdade das coisas, com mágica ou desconhecida sabedoria.
A razão, no entanto, ali se apresentava em duas figuras idênticas, num tempo desencontrado, por demais ilógico para se aceitar. Só mesmo num tempo diverso o mesmo corpo ocuparia um mesmo espaço. Um moço, o outro velho. Um ainda cedo, um outro que tardio.
Perdido estava de algum passado aquele homem que eu seria e quase atropelado por quem ele já fora, eu, seu passado agora presente na via dessa grande cidade.
Não se tratava de nenhuma criação fantástica, exercício de paralelismo, ou qualquer saudade. Eu era aquele homem. Ele era o que eu sou, em algum tempo, de algum modo remoto, uma transformação de mim mesmo, e de seu próprio passado. Eu via, como num espelho, o homem que eu não era, minha imagem refletida.
O contorno daquela figura não era incoerente com a obra que a compunha. A mesma matéria e o mesmo corpo, em certa medida metafisicamente complexa, mas ainda duas proposições que não se excluíam.
Feito a métrica e seu verso, éramos palavra de mesma poesia que somente aos olhos de um outro leitor poderia ser distância, qualquer criação diversa.
A inexorável mão do tempo esmagara a mim, tornando-me aquela velha criatura, por quem eu passava quase ao léu. Eu estava ciente, entretanto, de uma dupla existência, por acaso acontecida num lapso qualquer do tempo.
Tentei avaliar de outro modo a situação, visando a uma percepção imparcial e mais transparente. A verossimilhança ali estabelecida, de tal forma amalgamada na minha crítica e sóbria consciência, não deixava margem possível a qualquer negação daquele instante e daquela inusitada incoerência.
Éramos dois e éramos um. O que eu, de fato, era; e o que eu, de fato, seria.


Márcio Ares. 2011.

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