quinta-feira, 30 de junho de 2011

Grandezas

Buritis, Fazenda Xodó, 1999
fotografia de Márcio Ares


Nasci no Mato Seco porque o rio deu nome ao lugar.
 
Era um riacho. Não era, de verdade, um rio. E, de tão salgado, fazia parecer o mar.
 
O que era pouco, a água, um quase nada, deixou oceânica a minha vontade.
 
Toda a minha vida, meu verso, minha falta,
é o mar que era esse meu velho riacho.

 
Márcio Ares. 2009

Bem do fundo

Fernando de Noronha, 2004
fotografia de Márcio Ares


Agora, que sei a força da solidão,
é como um velho que eu retorno ao mar.
De igual pra igual, o mais fundo mistério sabe nossa razão.
Dois encarcerados
querendo margens para arrebentar.


Márcio Ares. 2009.
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terça-feira, 28 de junho de 2011

Inefável


As coisas que eu não compreendo ficarão neste poema.
Enumerá-las seria demasiado longo e de pouca valia.
Não são para os outros a minha ignorância, minha incoerência, infinitas obscuridades.
Isto é apenas a coragem cuidadosa de algumas dores silenciadas,
o relato-murmúrio de uma vida em desvantagem, quieta e vazia.

Não vislumbro nenhum porto para as minhas mágoas
nem sei o mundo em que estas palavras serão seguras.
É frágil viver o tempo ainda não sabido.
E esse medo faz doer, agora, mais forte que as margens do fraco, a dúvida,
nesse lugar-desencanto onde se instalou a vida, hora sem futuro.

Mas fica o meu verso palavra forte, a voz invencível
emaranhada de não saber a si mesma, que sou eu sem lugar.
O mínimo caminho redobra cuidados, pensa poesia
para nunca esquecer o que não se sabe
e fazer lembrar tudo o que podia.



Márcio Ares. 2009.

No meio de tudo



Deus não me engana diante das alturas.
Meus pensamentos, palavras e obras correm o risco do imperdoável.
Levanto os miseráveis olhos ao inclemente
porque Ele sabe a lei que eu provo insuportável.
Mas minha audácia sacode alegrias
e um turbilhão de prazer arde as minhas partes.
Liberdade é pra sofrer.
Viver é pecado e não basta.


Márcio Ares. 2009.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O complexo da casa


Esse grilo e sua infinita cantiga,
a abelha e estas asas, incansáveis, de boa operária,
o cão espreguiçando varandas, à sombra suave depois de muitos cerrados,
o cheiro doce do café em flor,
do cajueiro em flor,
o igual perfume das jabuticabeiras vestidas de noiva.
Aventuram-se os pássaros por entre coqueiros, mangueiras e jatobás.
No caminho do engenho, os mourões da cerca separam do gado os canaviais.
As rosas do terreiro vergam sob o inclemente sol da tarde.
Como o galo, terminada a noite, saberá a hora que se refaz,
sabem os gaviões o longe da casa e a faminta vigília dos quintais.
Nada é por inteiro se não for pelas metades.


Márcio Ares. 2009.

domingo, 26 de junho de 2011

Impossibilidade


Eu sou a criatura de Deus sem piedade.
Reconheço o meu beijo não dado na face da irmã que mais amo.
Reconheço as minhas mãos paradas, sem coragem para o outro, estátuas humanas.
Reconheço a negação de instantes que podiam ser mais de mim,
e a fragilidade dessa alegria respirando cuidados,
feito o silêncio palpitando sussurros asfixiados
de longos dias sem ninguém, sem nada.
Reconheço a minha falta de milagres, a inconsciência do amor doado
e o meu cansaço da imortalidade incompreendida nos pequenos gestos.
Esses momentos de amor negado são o escuro de minha aprendizagem.
Parecem pensamentos vagos, sentimento apenas,
o Deus que se perdeu no pó das estrelas
que um dia, quando eu era pequeno e pobre, me iluminaram.
Eu sou a criatura de Deus sem piedade.


Márcio Ares. 2009.

sábado, 25 de junho de 2011

Inseguro


Antes era o mar, muito antes do começo das coisas.
Depois a casa, a coisa e seu nome.
O sentimento ficou entre o antes e o depois
-  um vazio que, de vez em quando, lembra a palavra e flutua livre no tempo.
Antes era o mar, muito antes do mar que eu invento
para dizer a falta incompreensível das margens.
O mar vivo do sonho tem muita solidão.
Não tem pai nem mãe, nenhum deslumbramento.
Só o começo da morte, de fôlego violento,
atravessa esta minha hora, nesse barco lento e sem cais.
Minha rota é de inspiração.
Meu riso trêmulo é um coração atento para o que era antes do mar,
o meu lugar de antes, muito antes.


Márcio Ares. 2009.

Antigo selvagem


Esses cavalos de madrugada, inquietos,
tornaram-se os olhos do insondável,
vigorosos vigilantes noturnos do meu silêncio adivinhado.
A imprecisão do que eu nunca pude são esses cavalos sem felicidade
aguardando, com força, o momento oportuno
de seguirem um caminho que ainda não se sabe.
Talvez alguma vaga memória
que, do fundo de meus olhos, vivesse a infinita certeza da claridade,
pudesse explicar essa vigília e essa inquietude.
Eu sou estes cavalos ansiosos
porque mora em mim alguma antiga verdade, vaga e longínqua,
o contrário do medo agora desesperançado.
Sim, eu sou esses cavalos de um tempo quase morto,
ainda consciente do mais fundo pensamento,
a imagem do amor seguro e sem pressa
no tempo ainda sem palavras.


Márcio Ares. 2009

O lapso da oportunidade


Talvez eu a tivesse amado.
Na solidão da casa, na poesia de repente.
Talvez urgente eu a tivesse amado.

Antes que o dia chegasse arrastando o tempo,
e impusesse à minha consciência as possibilidades,
eu a tomaria em meus braços
esquecido de que tudo fosse tudo de repente
e então eu a teria amado.



Márcio Ares. 2009

Promessa




O que é que se pode fazer, Clarice, com a noite
enquanto o indizível aguarda, lá fora, na infinita escuridão?
O que é que se pode contra o medo e sua antiguidade?
Se a invenção de ser feliz não pode menos que a noite
- essa dúvida sem quando na inquietude da espera –
o que é que se pode contra a morte?
Alegria ridícula viver ofendido e pisado para o extremo de um instante sem piedade.
O que nos acontece, afinal, para esta solidão que não se pode dar, para este medo sem nome?
A marca da ausência atravessa os dias.
E só tu, Clarice, poderias entender este silêncio, esta miséria e este abandono,
essa falta de quem saiba o tempo das sombras
para que eu entenda a noite da vergonha inútil.
Porque tudo é quando se pode
e o que não se sabe existe é sem tamanho.



Márcio Ares. 2009.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Amor autoral



Não sabemos o amor, mas o tempo dentro de outro tempo.
E antes, e depois do incerto, o brilho do querer atento,
o olhar que se encontra, o combate que se vence, 
a máscara que se arranja, o sonho que se inventa,
o verso que se aponta, a memória que se pensa,
as horas que se esvaem e o tempo que de novo as enche.

Os amantes de Camilo amaram perdidamente.
A solidão de Marques durou cem anos de ausências.
Os amores tantos de Hollanda se acharam no contratempo.
O amor que atravessa cor de rosa é  muito  Grande Sertão.
O menino leu, escreveu e fez contas de Queirós para um amor sem tamanho.
Adélia disse tantos versos e depois a prosa para o tal amor de mãe.
Fernando fez-se pessoa com as cartas que amavam tanto.
Mary Shelley deu ao monstro a vontade dessa coisa estranha.
Camões amou em verso o fogo ardido sem saber.
Cervantes amou distâncias e a lembrança que ficou.
Li Po se jogou na lua do Rio Amarelo de amor.
Os versos do bom poeta ficaram um amor Drummond.
Vinícius amou fiel nos versos da perfeição.
Amado em nome baiano deixou a falta e o tanto.
O crime fez-se castigo no exato amor de não ser.
As secas vidas tocavam um povo de faltas e ramos.
A ira das vinhas amava uma família sem chão.
Saramago disse o amargo de amar e dizer que não.
A bravura e viagens de Homero fizeram-se amor à guerra.
Esopo foi ao penhasco por amor ao mais humano.
E o amor de um Virgílio idílico anunciou o tempo cristão.

Tanto amar cansa a minha palavra, meu verso, minha desrazão.
Tudo o que demais se sabe é muito pouco, é quase um nada.
Nós só temos o tempo que sabe o brilho do amor de outra gente
nas horas que se esvaem e no tempo que de novo as enche.



Márcio Ares. 2009.


Parisiense



Um jardim da França é capaz do silêncio que não se ouve mais.
O silêncio de pássaros e coelhos no recomeço das folhas.
O silêncio do verde a renascer do inverno.

O jardim silencia a grande cidade na paz repousante e solitária.
Só eu sei dizer o exílio deste banco, triste pouso por entre ramagens.
O frio aquieta o avesso e o verso da minha guerra.

Uma velha passa com o seu cão - só os cães sabem ser fiéis.
E eu me visto de uma saudade colorida, renovada como o caule que agora se desdobra,
guardando memórias, o silêncio da espera.


Márcio Ares. 2008.

Momento



O verso chama o olho do homem ao tempo mais precioso.
Olha essa vida inacabada, essa hora por acontecer.
Colhe essa palavra ainda não gestada e planta um poema.
Esse olhar que sabe a hora faz-se a palavra de novo.
E os versos no olhar do homem cumprem com o tempo de mais ser.


Márcio Ares. 2009.



domingo, 5 de junho de 2011

Vertigem




Só tenho metades e o poema
vasto demais
Um só verso e me acabo
no vão amor, princípio,
distância
mais nada


Márcio Ares, 2004

Pouco a pouco


É medieval a dor deste poema
fiel às tribos redescobertas Brasil.
Seu cocar é livre, seu braço é forte, arco de cor
muito além de qualquer escrito

Inimaginável este verso proscrito
se em minhas veias grita a morte séria.
A liberdade requer outra ilha
o amor trazido para a descoberta

Há minha voz e este desencanto.
Uma canção ancestral reverbera em mim.
Ouço as pancadas, sei dizer a dor
reconheço as vozes que adormecem comigo
descansando o grito de não morrer

A língua antepassada incendeia a manhã
como Jacairá escolhendo os encantados que um dia compuseram a Taba.
Mil almas sabem, sem erros, este canto que não dorme.
Depois de todas as tribos ainda sou daqui
Existe, e conheço, o esquecido
Arco, flecha, liberdade


Márcio Ares. 2005.

Sobre um porto seguro


Folhas brancas, pálidas, folhas de pedra
desejam mais que barcos e epopéias
reivindicam as mãos do homem grego
para recomeçarem o mundo

Três mil anos pesam estas folhas
o mármore para as parábolas
de alguns milhares depois
e dor maior ainda

Na falta do norte, mais que nunca,
as folhas querem um recomeço.
Agora, e só agora, depois do amor, da guerra, do futuro
o verso está sozinho no escuro das águas
no fundo mais fundo que o tempo

O escrito quer leme e sabedoria, a ética bebível
a caverna para o exercício das sombras
além da vida, a razão, o Olimpo
outro milhar de ilhas

A dor é mar, princípio, comporta
folhas sem nenhum escrito
folhas brancas, pálidas, folhas de pedra
insinuando-se, nuas,
para as mãos firmes de outrora
o recomeço do mundo


Márcio Ares. 2005.
        

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Naufragado


Minha alegria ficou de noite quando você não veio.
O que era muito ficou muito sem jeito.
Meu amor encheu-se de um vazio escuro.
Meu olhos ficaram porta, janela, estrada e medo.
Minha esperança, pálida e miúda, foi ficando sozinha comigo,
puro desamor, o fundo escuro do mar.
Na razão encoberta, que mais dói ausência, 
mergulhei sem norte
para a estranha sorte daqueles olhos
a superfície clara de algum lugar.



Márcio Ares. 2009.

Ditim


Nunca tive um dito na vida.
O Urucuia eu aprendi sozinho. Nem Rosa nem João.
Quando a beira do rio era medo, o caboclo d’água quase me engasgando o grito,
eu era só pernas.
Não entendia nunca.
Ninguém explicava história tão só, o mundo esquisito, o muito depois.
Mas o que eu via era tudo meu, guardado por amor, não sei como, até doer.
Se eu tivesse dito na minha vida
eu enxergava puro, sem saber.



Márcio Ares. 2009.


Viver é chumbo


O medo ataca de novo.
A cabeça dispara, o estômago dói, os nervos se rompem.
Sonhei com guerras por uma noite interminável.
A vida inteira estive no campo de batalha.
Acordo cheio de tiros. Sangram meu corpo e minha vontade.
Quero parar a dor e fico sem lugar - um baleado em campo inimigo, sem arma ou estratégia.
O corpo fraco e cheio de dor, muito longe de mãe, muito sem Deus.
Lembrar Paris na primavera não me consola. Lembrar o melhor prato, o melhor amigo, o maior prêmio, a mulher amada, nada tem gosto de paz,
nada parece dar fim ao animal desgraçado que sou agora.
Não tem sossego essa dor. Não tenho lugar para tanta morte.
Não adianta a leveza do canto orvalhado de pássaros, lá fora, se os canhões retumbam dentro de mim.
Explodem todas as bombas.


Márcio Ares. 2008.