terça-feira, 12 de julho de 2011

De casco a rabo


Foram trazidas por desejo. A solidão cristalizada em seu desapego aprendido fazia cada vez mais distante algum envolvimento, qualquer outro querer. Sua indiferença lhe convinha à incompreensão do amor. Morava só. Não tinha uma casa propriamente dita, mas um barracão de boa estrutura, embora sem muita alegria. Estar distante e só não lhe parecia um árido caminho. Gostara delas, no entanto. Vieram, as duas, ainda pequenas, mas muito bonitas, verdinhas, verdinhas. Nunca antes imaginara, é verdade, trazê-las para morar com ele, até imaginar o silêncio conveniente de serem amigos.
Pareciam, no entanto, desaprender, a cada dia, qualquer vínculo de amizade, qualquer contrato da boa convivência, um mínimo princípio para com o novo lar e o novo amigo.
É certo que nunca antes ele se doara a alguma amizade contínua. Tivera, nos tempos da infância, apenas um frango que se pôde chamar grande amigo. O frango parecia gostar de histórias. Assistiam juntos, do sofá da sala, aos programas de final de tarde, na televisão. E era o Sítio do Pica Pau Amarelo o programa preferido.
Eis que um dia o menino descuidou-se do amigo. O imprudente frango, travesso que era, caíra na privada, donde fora retirado, quase morto, com algumas penas arrancadas e uma asa meio caída. Mancou depois por longos dias - nem se sabe se pela queda ou se por algum outro inusitado possível. E embora uma suspeita o acompanhasse vida afora, já não se recordava por que motivo triste afastaram-se na vida.
Agora, num arremedo de memória, investia outra vez na conquista de amizade tão singular. Quando chegaram, estavam calmas e não se mostraram deslumbradas. Também não demonstraram desgosto, nem se abateram com mudança tão repentina. Vieram mansas e cuidadosas, educadas para serem boas companhias.
O tempo, no entanto, não cumpriu com o amor esperado nem as tornou mais amigas. Eram duas desavisadas. O olhar de amizade não as aquietava. Não se importavam com as ternuras que lhe eram destinadas nem com os carinhos que lhe eram oferecidos. Inventavam caminhos sem rumo e não se importavam para onde iam. Planejavam, sem nenhum cuidado, suas loucuras pela casa. A altura dos móveis não lhes dizia nada. O terreiro não lhes impunha qualquer destemor. Nenhum perigo servia-lhes de alerta para a vida. O aquário onde ele as punha, para a natação ou rápidos mergulhos, era de onde sempre fugiam. E se o escuro não lhes tirava o rumo, a claridade não lhes dava melhor destino. Muito antes que o amor existisse, desaprenderam-no sem qualquer aviso.
De coração miúdo, doou-as à esposa de um grande amigo, na esperança de que elas descobrissem o sentido de amizade, ou que ao menos se entendessem melhor na vida. E eu até hoje imagino que aqueles dois quelônios foram o seu porquinho da índia.

Márcio Ares. 2009


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