domingo, 14 de fevereiro de 2016

O TANTO QUE ME FALTA

As árvores lá de casa eram de muitos tipos e lugares. 
O meu lugar era só um lugarzinho de muita árvore e pouca palavra.
As sementes e galhos, vindos de longe e mais longe, ali sentaram praça. Davam-nos sombra contra a violência do sol. Davam-nos colo para os fins de tarde. Serviam de galhada para o amor de passarinhos. Davam asas para as nossas meninices.  Eram a memória do melhor da vida que nos restasse. Serviam de lugar sagrado.
Eram autônomas. Árvores e coqueiros dali se enamoravam de curiosas espécies lá chegadas. A terra era bom abrigo, como dizia meu pai. E nossa alegria de menino se engrandecia com as possibilidades.
Tudo era demais real. Poesia só veio depois.
Eu não sabia a palavra tédio, do mesmo modo que eu não sabia que escrever pudesse tornar alguém formidável. Não punha ainda reparo de que o outono era menos natureza e mais coisa da alma. Adivinhava, isto sim, ou pressentia, que o tempo depois do tempo é o avesso dos manuais. E que a fantasia é que é de verdade.
Eu só conhecia a escrita das imagens desenhadas na parede da sala, sobre o adobe rebocado de terra de cupim e esterco de gado.
Naquele tempo, viver para ser feliz era um sonho viável. Muro nenhum nós tínhamos. Nenhuma cerca nos separava. De cima das árvores descrevíamos, numa mesma língua, aquele território. Era nosso o céu de estrelas e o mundo todo sem grades nem sangrentas batalhas.
Nossa mãe não colheria as flores do terreiro para um almoço apressado, nem se recebesse alguma importante visita, senão a do santo padre. As flores duravam lá fora. Era dentro de nós que a primavera reinava.
Pintávamos de cor da terra a nossa casa. Eram as cores dali. E tudo exigia a vigília constante dos olhos, o costume dos cuidados, o colorido dos detalhes. Não teríamos de ressuscitar as cores do lugar que não matássemos.
Nossos banhos eram no rio de todos os dias de muita vontade. Eram rios sem esgoto ou água encanada. O tempo e as águas eram um brinquedo diverso demais. O sossego sofria de alegrias. Amigos se preocupavam, por iniciativa e amor inabalável, aos homens, às plantas e aos bichos.
Nenhum carnaval nos encantava. Na força bruta da lida, e na certeza da vida por continuar, seria difícil aceitar as máscaras. Forró, depois do leilão na igrejinha, aos domingos, era tudo o que nós dançávamos.
Ecos, cheiros e cores visitavam nosso mundo significado, segredando o que nos era familiar.  Os zumbidos que nos acordavam vinham de cantos, silvos, pios, berros, relinchos, cacarejos e latidos. Tudo muito livre das superinvenções humanas. Os pássaros deixavam em nós um gosto por voar. Deslizavam no ar figuras aeroplanas poéticas e originais. Tudo era lírico, ávido de um bom céu e imaginação sem igual.
Entre intensos e suaves, íamos ficando pura ternura e sentimento.  Iluminados, no interior, éramos a alma de uma futura arte, a imagem de um singular retrato.
Mas o que o tempo nos leva, de algum modo o futuro nos traz.
Voltei, muitas vezes, como outros voltaram, a minha terra. 
Descobri árvores destruídas e coqueiros arrancados. O canavial fez-se velho e amiudado. O mato e as flores eram só galhos cortados. O horizonte azul infinito ficou noite longa e sem vida. Construíram no lugar um grande nada, cheio de melancolia, na razão da modernidade.
Doeram em minha memória as raízes que em mim existiram até muito tarde.
Fiquei galho partido, raiz sem chão, tronco sem folhagem.
Tive pena do que se tornou apenas frágil arquivo em nós, o exílio da solidão, a névoa do tempo passado.

Márcio Ares. 2015.

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