quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O QUE PODE HAVER ENTRE NÓS DOIS

O que restou em você
depois daquele amor que eu não pude ser
já não pode ser amor
amizade, talvez



Márcio Ares. 2012.

E POR ISSO VIVO

Fui aprendendo, com a alegria dos que nunca me deixaram,
a vida entre amigos.
Difícil viver comigo, eu sei, desde muito sempre amargo.
Isso é o que nunca me disseram, mas que o mundo sabia,
e eu adivinhava.

Quando fui tímido, ou tive medo, fizeram-me acreditar,
para que, em mim mesmo, o mal se desencontrasse.
Nunca esperaram que eu respondesse às mensagens, emails,
telefonemas cheios de mimo e cuidado,
cartões de feliz páscoa, natal e outros aniversários.
Sabiam meu desajeito com essas coisas da razão.
Meu coração fez-se bruto, insatisfeito demais.

Morri, muitas vezes, em segredo, mas nunca sem um abraço,
um olhar mais demorado, um afago no cabelo, um sorriso camarada,
caso eu precisasse e o orgulho não me repreendesse.

Montei acampamento numa distante clareira
e fui ficando prisioneiro de uma guerra ensimesmada.
Atirei ódio contra a minha bandeira, traí alguns amores,
e embora com certo desespero
fui guardando cores para, mais tarde, algum tempo de paz.

Trago, felizmente, ainda forte, comigo, sempre,
esse corte fazenda de interior tecido
para que vestido de verde, bicho e semente
eu pudesse, n’algum tempo, com uma saudade sentida,
o entendimento de amigos que sempre me quiseram.

E enquanto em mim resistir o possível mistério
eu me deparo, um dia, com a total felicidade



Márcio Ares. 2012.

PARA QUANDO PERDER O CONTROLE FOR A DIREÇÃO

Noventa quilômetros de amor doendo, perdidamente apaixonado.
Chegou, como sempre chega, ardente,
num tempo inesperado, humanamente inacabável,
e foi guardando palavra, querendo vez, cavando lugar.

A distância do alheamento exigia encontro, dizer as coisas de dentro,
o saber antigo das almas.
Ia ficando plural a solidão do invento.
Ia ficando mais gente aquele quando de acaso.

A idade da razão, o entendimento da estrada
e o medo, quem sabe, de amar em vão
sinalizavam cuidados, a contramão sem placas pra viagem,
o risco de voltar pra casa, uma tristeza de possibilidades.
E o coração, acelerado de emoção e coragem, acenava de uma estação
além de qualquer dor, arfante de se encontrar.

Leve e louco, o futuro dos amantes se desencontrava
porque antes o incerto do amor
porque antes o invento de amar.


Márcio Ares. 2012.

LARVA

A planta, muda, esperando palavra
e eu, pensante, mato cortado.

Lá fora, um sol brilhante asteado.
E minha alma a meio mastro.

Sou este ser rastejante no escuro, triste e obsoleto
quando os galhos murchos, na varanda,
rimam com o céu azul desbotado
nesse poema sem inspiração, arrastando-se,
feito lagartas que nunca chegarão a borboletas.

Oh, descrença, meu Deus!
Ficar inventando asas para a minha natureza.

Quero um buraco, a casca seca das árvores,
uma casa de barro, sem terreiro,
com um velho galho encostado.

Querer desse jeito é querer, reconheço,
demasiado
essa manhã de tristeza
essa coragem pra nada.


Márcio Ares. 2012.

OLHOS TORTOS

Todos, ao meu redor, de muito olhar se alimentam
de nós que trazem nos olhos
estranhos, de alumbramento.
Estão aqui do lado, na altura e força dos meus ombros,
mastigando a mesma inverdade, no destempero da indiferença
à mesa posta e servida a todos os tempos.

Mas é fome o que eu trago nos olhos
cegos de entendimento.


Márcio Ares. 2012.

MADRUGADO

Qualquer Deus intercessor me salvaria
com a graça, imediata, de um poema
antes que você despertasse.

A minha poesia quer acordar ao seu lado
pra que o mais amado bom dia
seja lido nos seus lábios.



Márcio Ares. 2012.

ARTE QUE NÃO SEI

Quisera eu carregar um violão nas costas
para que as ruas intermináveis ficassem um dia sem fim.
E que esse dia fosse a memória da sorte, o chamado para ser feliz.
A mão encorajando o acorde do espírito carregado feito a cruz
na coragem da luz que se iguala aos ombros de infinitas ruas
onde o querer de cordas se arranja
interminável resposta
e um jovem talvez vá, talvez volte
desse lugar felicidade
livre, pelas ruas da vontade longe,
e da eternidade que se pode agora.


Márcio Ares. 2012.

ESCOADOURO

De um lugar distante, muito ao contrário do mar,
sempre fui um menino cheio de curva e barranco,
um rio correndo só, na solidão da lembrança,
com um jeito manso de primeira fonte
querendo, antes, muito mais ficar.

O segredo, no entanto, pesa além das pedras,
tanto busca e não alcança.
E lave e leve, de mansinho, esse querer sem onde,
água em descaminho que aqui dentro quebra.


Márcio Ares.

BARTOLOMEU

Diz, ao anjo que o acolhe, que eu não sei viver assim.
A palavra mais sozinha dói a dor que nunca morre.
A tristeza que se importa, menos triste faz-se forte,
com sua própria cicatriz.
Mas o amor que você via só em teus olhos cabia, não em meu verso menor.

Quem, agora, há de fumar os cigarros que eu escondia ou guardava
pra o acaso da visita?
Quem, agora, me dirá, com a mesma delicadeza,
a metáfora da vida, a coerente certeza, o assombro desalegria,
ou fará contas de cabeça, na história que eu mais amei?
Quem mais pode o silêncio comigo?

Meu dia agora é saudade, feito o seu vermelho amargo
de inacabável tristeza.
Fica em Deus que eu fico triste,
fico o estranho mais sem jeito,
fico o amigo mais sem vida.


Márcio Ares. 2012

DESCAMINHOS

Eu fico muito cansado de mim, ao longo do ofício de entender o mundo.
É que sou eu o imprevisto da estrada, a curva desavisada, esse abismo de nunca ter fim.
Tudo são horas que sabem a tempo o desconforme
da palavra que lambe o incerto dos olhos, caçando algum alento,
em metáforas do acaso e de qualquer divino presságio
a carne que dói,
a alma que lamenta.


E eu, de tanto saber nada, invento a paixão dos contrários
e clamo à ordem do absurdo,
à paixão, ou loucura, dos que tudo podem,
ao óbvio da razão mais pura,
que nesse planeta, em órbita desgovernada,
seja o amor um lugar seguro.


Amar, no entanto, é para mim a mais bruta desvantagem,
o escuro paradoxo, daqui até o mais distante,
um amargo estranhamento de vontades, corpos e coragem tanta,
dizendo com outras palavras
do silêncio, o que eu não compreendo,
do sentimento, o que eu não dou conta.


Márcio Ares. 2011

REVELAÇÃO

Ergueu-se algo na contramão do meu dia.
Na altura dos olhos da avenida,
um braço erguido, um livro na mão e uma voz inaudível
fizeram dar-se qualquer coisa estranha.
Feito um canto e uma bandeira na alma de um viajante,
há muito, distante de sua terra primeira,
eu, que voltava senão da aventura de ser livre,
ali, na esquina das pistas,
soube Dele, a única hora, a imagem santa.

Chorei minha vida, como nunca não, nos moldes de quem sofre e ainda crê na alegria.
Encharquei-me de lágrimas, feito quem desconfia do perdão,
mesmo ante aquela verdade corajosa
sob um árido sol de meio-dia.

E eu, só, remoendo comigo a minha falta de fé.

Vê, lá, se aquilo eram horas!

Deus é coisa muito esquisita!



Márcio Ares. 2011.

INVERSO

a verdade do poema ainda está por ser
o verso que reclama o verso que reclama
o céu da palavra mais sem nome
asas da vontade
pecado que se come
para acontecer

é dor o que eu escrevo, meu verso que o diga
ou será mais longe o que se deu
enquanto eu escrevia

finjo como ele disse que se faz
exato como eu negava que faria
sentir é meu jeito
feito verso feito
minha dor poesia


Márcio Ares. 2011.

TORRENCIAL

Eu choro esse rio de um céu despencado.
Sob um dezembro encharcante, já foi belo horizonte o lugar dessas águas.
Hoje é barranco, meninos órfãos, velhos soterrados.
Eu choro essa gente chorando o mal tempo,
esse repente ajaneirado.

Cidade descente n’água, morro que vive, que mata.
Enchente atropelo de barro
e teto e árvore, carro, gente e buraco
que na emergência se basta e se pensa
despensa de plano e de gastos, dívida pra sempre,
encosta mal povoada.

Povo que chora torrentes, junto ao lamento que alaga
fica gerais tristemente
nas minas debaixo d’água



Márcio Ares. 2012.