quinta-feira, 31 de março de 2016

NÃO SEI NADA DISSO



Para que eu soubesse o amor
eu o procuraria pelas ruínas da Síria
por Ciudad Juárez, entre os becos da Rocinha, além dos guetos de Angola
iria visitar a Índia, yoga ao pé do Nepal
faria verso em latim para algum mantra sagrado
acreditaria
de razão e alma

Para que eu soubesse o amor
eu o nomearia de carta marcada
diria os meus medos de viver sozinho
desaprenderia os meus bons modos
lançaria o ódio na cara dos santos
seria o velho na cartomante
não pensaria o mármore do inferno

Para que eu soubesse o amor
eu me renderia a qualquer encanto  
não seria o vazio que eu sou neste instante
e era mais feliz o  homem desta hora

Márcio Ares. 2016

OS FRUTOS QUE EU MAIS GOSTAVA



O meu pai, com os bolsos cheios de murici maduros,
me aguardava na porteira do curral
na hora exata de eu partir.
Fóramos duros, um com o outro, homens do mesmo e batido barro
como o cerrado seco e o travo dos muricis.
Eu retornava, sem me despedir, seguro da minha grande razão
até aquele momento de ele me entregar os frutos
até o inesperado ato de me olhar  fundo nos olhos
e sorrir.
Bênção, pai! Disse, ainda com a certeza do meu ódio bruto.
Não dava o braço a torcer
mesmo com os seus olhos de graça
botando as bênçãos em mim.

Márcio Ares. 2016.

DESALEGRAMENTO



Os homens deixam suas cavernas logo cedo
e seguem velozes contra o invento das horas
sobre as tantas rodas barcos helicópteros
cheios de pressa e razão

A compaixão não os comove
nem a poesia nem a beleza nem o dó
tão seguros de si mesmos em seus próprios anzóis
engasgados de falta e de não saber
o oceano do mistério que os engole

No impossível futuro que se inventa
o afeto perdeu-se no triste da ausência
e tudo se confunde na falta que os aflige
até a mais remota das memórias

Márcio Ares. 2016.

FÔLEGO



eu não sei o tempo de ser amarelo
não paguei o preço de uma vida à toa
não me entristeci por qualquer coisa pouca
fui louco de jogar palavra
disposto para muita guerra
coragem me deixou mais torto
sofri por não sofrer calado
briguei a briga dos fracos
culpei os muito culpados
mas sempre dei a minha outra face
vivi dor que não se compreende
amei amores que partiam
rompi com as conveniências
disse maldito o inferno dos outros
e, dentro de mim, o céu aprendendo

Márcio Ares. 2016

O QUE PODEM DIZER



eles podem dizer coisas horríveis a meu respeito
escandalosos desvios de rumo
aventureiro, vadio, seresteiro
incorrigível
diriam que fui mau exemplo
indivíduo suspeito de hábitos estranhos
grave tendência ao ócio
negócios de pouca importância
pura poesia
diriam mesmo inconsequente
negligente, imprudente, imperito
a culpa de todas as culpas
um absurdo
e eu lhes diria
com muito gosto eu lhes diria
o quanto fui feliz

Márcio Ares. 2016